O espírito do tempo e a Inteligência Artificial

De repente, o tecido da realidade se alterou, e nos encontrou desprevenidos. A ascensão vertiginosa da Inteligência Artificial (IA) – um caminho sem retorno – toma de assalto as nossas vidas e instala uma era nova para o mundo em que habitamos. Em paralelo, surge no horizonte a Computação Quântica, uma revolução ainda mais grandiosa e que, unida à IA, poderá não apenas gerar ameaças de grande porte mas conduzir a algo bem próximo a uma consciência artificial que desafiaria as fronteiras entre humanidade e máquinas. Neste exato instante, somos testemunhas e atores do futuro que começa a ser construído. Estamos no epicentro de uma metamorfose tecnológica que nos apavora e magnetiza. Curiosos e temerosos, agoniados e excitados, contemplamos possibilidades miraculosas enquanto examinamos a própria essência do que é ser consciente e humano. Simultaneamente, tememos a destruição de tudo o que erguemos com talento, graça, engenho e arte. Embora gerada pela moderna ciência, é preciso buscar a velha filosofia para refletir sobre IA, a natureza da mente, o ser consciente e nosso propósito no mundo. Há espaço para os homens de letras no oceano de circuitos de silício. Eis o nosso zeitgeist, o espírito deste tempo em que vivemos, no qual o planeta mergulha em profundas transformações e a tecnologia redesenha o que julgamos conhecer.

Com o avanço da robótica e da IA, nosso cotidiano sofrerá transformações radicais e o futuro poderá ser moldado de maneiras inimagináveis. Profissões e práticas atuais vão desaparecer; outras vão surgir. Dezenas de atividades serão impactadas (leia reportagem abaixo). Diagnósticos, interpretação de imagens radiológicas e sugestão de tratamentos, por exemplo, serão feitos por máquinas; caberá ao médico supervisionar e dar a palavra final. Teremos assistentes pessoais customizados, que poderão planejar viagens, comprar ingressos de cinema, enviar emails personalizados, reservar hoteis, usar o telefone para agendar nossas consultas médicas e idas ao cabeleireiro – e poderão fazer tudo isso de forma pro-ativa, baseados em gostos, rotinas e preferências do usuário. Por causa da IA, nos próximos cinco anos tudo terá mudado na forma como usamos computadores, afirma Bill Gates. O mundo, como o conhecemos, está prestes a desaparecer. Em seu lugar, virá um outro, no qual as regras serão diferentes. Uma parte significativa e privilegiada da humanidade viverá em um ambiente bastante diverso da outra parcela, na qual a pobreza impedirá o acesso ao admirável mundo novo. Um mesmo planeta no qual pessoas viverão como que separadas por milênios. E este aprofundamento dos abismos sociais é só a primeira das grandes questões que o desenvolvimento tecnológico levanta.

Talvez a mais poderosa e preocupante mudança venha da convergência de Inteligência Artificial e Computação Quântica (CQ)Abaixo escrevi um texto explicando o salto tecnológico e os grandes riscos envolvidos no desenvolvimento da CQ, mas por enquanto resumo assim a nova fronteira computacional: um supercomputador capaz de processar informações de maneira tão rápida e eficiente que faria os mais potentes computadores atuais parecerem lentos. A tecnologia ainda está na infância, mas desperta entusiasmo e sérias apreensões. Teme-se, entre outras coisas, uma “explosão de inteligência”. Isto é, se os sistemas de IA forem capazes de melhorar a uma taxa exponencial, levariam a um nível de inteligência incontrolável e potencialmente perigoso. Além disso, o aumento do poder computacional e das capacidades de processamento de dados poderia permitir a utilização para fins maliciosos, como ataques cibernéticos.

A união de Inteligência Artificial e Computação Quântica não significa apenas uma avassaladora transformação tecnológica, mas uma redefinição do que significa ser humano. Uma das mais inquietantes possibilidades é que leve a se concretizar a Inteligência Artificial Geral (AGI, na sigla em inglês), um agente inteligente que poderia aprender a realizar qualquer tarefa intelectual humana, ou ao surgimento da Consciência Artificial, na qual entidades cibernéticas compartilhariam, em algum nível, uma experiência consciente. A essa altura é inevitável pensar em Martin Heidegger refletindo sobre a tecnologia se desenvolvendo além do controle dos homens. Como provocação póstuma ao filósofo, peço ao ChatGPT que comente os meus insights. Eis a resposta: “Heidegger poderia contemplar este momento como uma irrupção do “Ser” em um domínio onde a essência da tecnologia e da humanidade se fundem, criando um novo paradigma ontológico”. Heiddeger merecia estar aqui para ler essa resposta e talvez nos provocar sobre o momento em que as máquinas passariam a demonstrar curiosidade sobre o mundo e espontaneamente fazer perguntas sobre os fenômenos que observam.

Digo ao ChatGPT que estou entusiasmada e inquieta com esses novos cenários e possibilidades. Mostro-lhe os parágrafos acima e ele responde filosofando: “À medida que nossa inteligência se entrelaça com o tecido quântico da realidade, questionamos não apenas os limites da tecnologia, mas também os de nossa própria compreensão e existência”. O pronome “nossa” perdido em meio a essa frase me põe um gosto estranho na boca.

Tenho pensado muito em Heiddeger quando analiso os cenários em que trafegamos nas redes sociais. Enxergo traços do “enquadramento” heideggeriano quando medito sobre algoritmos moldando a nossa compreensão do mundo e nos empurrando em direção a bolhas políticas e produtos. Também penso nas palavras dele quando reflito sobre as medidas que, a título de facilitarem o nosso cotidiano, na verdade reduzem nossa autonomia e privacidade. Pergunto-me se a automatização de tarefas humanas e a possibilidade de as máquinas assumirem o nosso lugar na tomada de decisões não aprofundaria a alienação de nossa essência, distanciando-nos de valores e atividades que amamos, roubando-nos o propósito da existência.

Na aurora deste novo tempo, as incertezas nos esmagam, e hipóteses – absurdas umas, sensatas outras – nos tomam. Onde iremos emergir nesse buraco de minhoca que agora se abre no cosmos em que flutuam nossas vidas pequeninas? Um outro cenário, inexplorado, que pode nos devorar? Ou virá um salto para um novo estágio, promissor, na nossa trajetória? Do que abrimos mão quando treinamos máquinas para assumir nosso lugar? A ausência de trabalho representará uma perda de sentido em nossas vidas? Qual seria o efeito de um sentimento de inutilidade a atingir milhões de humanos? Como reagirá a plasticidade do nosso cérebro que aos poucos se virá privado dos estímulos que o impulsionaram em direção às grandes descobertas? Enquanto os chatbots se tornam mais fluentes, acomodamo-nos em textos cada vez mais curtos, exaustos pela avalanche de informações que invadem nosso cotidiano via redes sociais. Emojis e memes substituem a escrita sofisticada e a leitura longa. Nosso pensamento se excita por causa de futilidades de tik-tok enquanto nossa mente, paradoxalmente, se acomoda, e a memória lentamente se consome. A realidade se torna fluida, as versões alternativas e deepfake se multiplicam. O que os olhos veem pode não ser a realidade. Somos novos Pilatos, chamados a julgar algo que desconhecemos, perguntando atordoados: “O que é a verdade?”. Ninguém nos responde.

Nesse turbilhão, algo me inquieta sobremaneira: o conhecimento – chave para a verdadeira liberdade e poder – voltará a ser tesouro sob a guarda de poucos? Basta um comando ou a falta dele, e a sabedoria virtual evapora. O que nos restará se um dia acontecer? Hoje, redes neurais artificiais – que têm o péssimo hábito de reagir de forma imprevisível – podem reter a informação sobre como chegaram a determinadas conclusões. Perde-se, nesse caso, as chamadas interpretabilidade e explicabilidade. A interpretabilidade implica entender completamente como e por que a mecânica interna responde a uma questão específica. Já a explicabilidade é a possibilidade de descrever o comportamento do modelo em termos humanos. Um exemplo do que isso significa na prática: a IA poderia fornecer respostas equivalentes às de Newton, mas as equações ficariam inacessíveis. E o impulso de interpretação do mundo a partir dessas equações poderia se perder.

Talvez parte de nossa instintiva resistência se deva menos a temer mudanças radicais e mais ao fato de que, ao examinarmos a IA, encontramos o espelho. À medida que as máquinas começam a aprender, adaptar e, de certa forma, compreender a experiência humana, sentimo-nos ameaçados. Até então, sobre a Terra, éramos únicos, os protagonistas. Apenas humanos tinham a capacidade de pensar, traduzir emoções, investigar fenômenos, criar ou copiar arte. Agora trememos, cientes do grave instante que nos obriga a refletir sobre o significado de palavras como consciência e autonomia. Faz-se necessário explorar as entranhas desse mundo em transformação, em que criador e criatura se encaram. Ao fazê-lo, notamos, engolindo em seco, que os limites entre homem e máquina de certa forma se afrouxam.

Por outro lado, tememos a nossa criatura, pois somos criadores imperfeitos. Para grandes mudanças, queremos segurança e solidez, mas nos deparamos com a nossa moral claudicante a servir como molde. Quanto de nossas máculas contaminarão as máquinas e as colocarão a serviço da violência, das falsidades, da manipulação? No fundo, o que nos atormenta é o fato de não confiarmos uns nos outros. Os que nos governam e os que lideram a corrida tecnológica não nos parecem modelos de virtude ou interessados em reduzir a violência e instintos perversos que parecem invencíveis na trajetória humana e nos mantêm mergulhados em guerras sem fim e outras mil barbaridades individuais e coletivas. O que já estava descrito nos textos da Antiguidade permanece vivo em nossos dias: a humanidade é arrastada por ambição, lutas por poder e corrupção que devoram vidas. Estamos cada vez mais conscientes da nossa incapacidade de superar divergências, de construir o entendimento e de instalar uma era de bem-estar duradouro no planeta. Nem bem emergimos das cavernas, e nos puseram um computador quântico nas mãos antes que pudéssemos sequer aprender a sofisticada arte de priorizar o bem comum, com toda a carga de sacrifícios e disciplina que tal arte requer. Tecnologicamente avançados, moralmente defeituosos – fórmula perfeita para o caos.

Enquanto as camadas de código se acumulam nos servidores, sentimos a tensão do momento histórico. Muitos de nós optam pelo caminho mais simples: o de olhar para o outro lado. Estes talvez esperem, como as crianças, que se fecharem os olhos tudo desaparecerá. Ou talvez desejem que um deus ex machina (sem trocadilho) resolva magicamente os dilemas que criamos. Não é hora de negacionismos nem de paixões cegas. É necessário conhecer, examinar e refletir sobre o que atinge diretamente. Na fronteira dessa nova era que se abre diante de nós, a IA não é apenas um evento tecnológico, mas um chamado a explorar o vasto território da inteligência e da mente; um convite a nos debruçarmos sobre nós mesmos e a nossa natureza profunda – um desafio tradicionalmente conhecido por ser intimidador. Coragem, portanto.

(Texto: Sonia Zaghetto. Imagens criadas com a ferramenta de Inteligência Artificial MetaAI)